Opinião

A exploração dos serviços locais de gás (na forma) canalizado

Análise das leis e normas que regulamentam a distribuição e comercialização de gás no país e os obstáculos para a abertura do mercado

Atualizado em

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Durante mais de três décadas, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), os consumidores industriais de gás natural tentam romper os diversos entraves criados na cadeia de petróleo e gás.

Com a Lei do Petróleo de 1997,[1] deu-se início ao fim do monopólio estatal federal em atividades de exploração e refino ligadas ao segmento petrolífero. Já em 2009, a Lei do Gás[2] trouxe a abertura ao setor de gás natural, visto que instituiu: “normas para a exploração das atividades econômicas de transporte de gás natural por meio de condutos e da importação e exportação de gás natural, de que tratam os incisos III e IV do caput do art. 177 da Constituição Federal, bem como para a exploração das atividades de tratamento, processamento, estocagem, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural”[3]

Desde a promulgação da Lei do Gás, algumas atividades econômicas estão sendo passadas paulatinamente ao setor privado.

Mas, em decorrência da falta de normatização federal que regule as atividades constantes do Capítulo VI “Da Distribuição e Comercialização do Gás Natural”, Art. 46 a Art. 49 da Lei do Gás, haverá muita dificuldade na abertura do mercado.

O gás natural e sua movimentação

Entenda-se “Gás Natural” (GN) como sendo: “todo hidrocarboneto que permaneça em estado gasoso nas condições atmosféricas normais, extraído diretamente a partir de reservatórios petrolíferos ou gaseíferos, cuja composição poderá conter gases úmidos, secos e residuais;[4]. O principal componente do GN é o metano (CH4), com quantidades menores de outros componentes químicos.

(*) “A Lei nº 11.909/2009 define “Acondicionamento de Gás Natural” como o confinamento de gás natural na forma gasosa, líquida ou sólida para o seu transporte ou consumo. Os artigos 41 e 42 desta Lei determinam que a atividade de acondicionamento de gás natural será exercida por empresa ou consórcio de empresas, desde que constituídos sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, por conta e risco do empreendedor, mediante autorização e que a ANP regulará o exercício da atividade de acondicionamento para transporte e comercialização de gás natural ao consumidor final, por meio de modais alternativos ao dutoviário.“

(*) “A Lei nº 11.909/2009 define “Acondicionamento de Gás Natural” como o confinamento de gás natural na forma gasosa, líquida ou sólida para o seu transporte ou consumo. Os artigos 41 e 42 desta Lei determinam que a atividade de acondicionamento de gás natural será exercida por empresa ou consórcio de empresas, desde que constituídos sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, por conta e risco do empreendedor, mediante autorização e que a ANP regulará o exercício da atividade de acondicionamento para transporte e comercialização de gás natural ao consumidor final, por meio de modais alternativos ao dutoviário.“

Conforme fluxo acima, quando o GN for movimentado de alguma forma comprimida e liquefeita, serão chamados de gás natural comprimido ou GNC e gás natural liquefeito  ou GNL, respectivamente.

Movimentação do gás através de duto

No caso da movimentação de gás através de duto (ou gasoduto) poderão ser considerados gasodutos de transporte[6] ou de distribuição (este também chamado de rede de distribuição), dependendo da destinação, pressão, diâmetro, etc.

Segundo “DICCIONARIO ENERGÉTICO” da empresa espanhola Naturgy [7], entende-se por distribuição a atividade de movimentar o GN dos gasodutos de transporte (“city gates”) até pontos de consumo. Portanto, as empresas de distribuição têm a função de: distribuir, construir, manter e operar as instalações de distribuição.

Distribución: La distribución es una actividad regulada que tiene por objeto principal la transmisión de energía o de gas natural desde las redes de transporte hasta los puntos de consumo. Las empresas distribuidoras tienen como función distribuir la energía, así como construir, mantener y operar las instalaciones de distribución.

A distribuição e o gás canalizado

A Lei do Gás deveria estabelecer diretrizes nacionais básicas para a atividade de distribuição de gás natural, mas devido à interpretação errônea do parágrafo 2º do Art. 25 da CF/1988, embaralhou algumas atividades, tais como: transporte, distribuição e comercialização. Como, por exemplo, as definições constantes dos incisos VII e XVIII do Art. 2º da Lei do Gás [8].

VIII - Comercialização de Gás Natural: atividade de compra e venda de gás natural, realizada por meio da celebração de contratos negociados entre as partes e registrados na ANP, ressalvado o disposto no § 2o do art. 25 da Constituição Federal;

(...)

XVIII - Gasoduto de Transporte: gasoduto que realize movimentação de gás natural desde instalações de processamento, estocagem ou outros gasodutos de transporte até instalações de estocagem, outros gasodutos de transporte e pontos de entrega a concessionários estaduais de distribuição de gás natural, ressalvados os casos previstos nos incisos XVII e XIX do caput deste artigo, incluindo estações de compressão, de medição, de redução de pressão e de entrega, respeitando-se o disposto no § 2o do art. 25 da Constituição Federal;

No parágrafo 2º do Art. 25 da CF/1988 foi conferido aos Estados a exploração dos serviços locais de gás canalizado, com o seguinte texto:

2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão a empresa estatal, com exclusividade de distribuição, os serviços locais de gás canalizado.

Na redação do parágrafo supra, os Legisladores Constituintes utilizam-se das expressões “distribuição” e “gás canalizado”.

Segundo o inciso VII do Art. 2° do Decreto Estadual (SP) nº 43.889, de 10 de março de 1999, entende-se por distribuição: “movimentação de gás através de um sistema de distribuição”, e ainda define “sistema de distribuição”, como sendo o “conjunto de tubulações, instalações e demais componentes, que interligam os pontos de recepção e entrega, indispensáveis à prestação do serviço de distribuição de gás canalizado”. E ainda, o termo “gás” como sendo: “energético fornecido por uma concessionária a usuários, na forma canalizada, através de sistema de distribuição adequado, devidamente autorizado pela CSPE”.

E a expressão “gás canalizado” é empregada para designar a forma de prestação do serviço de movimentação de qualquer fluido em estado gasoso através de tubulações (dutos). No “DICCIONARIO ENERGÉTICO” supracitado [9], entende por:  “Canalización: es el conjunto de tuberías y accesorios unidos entre sí que permite la circulación del gas por el interior de los mismos.”. E no apêndice ao Contrato de Concessão de São Paulo, [10] que trata das terminologias, define que:

DISTRIBUIÇÃO DE GÁS COMBUSTÍVEL CANALIZADO compreende as atividades necessárias à movimentação de GÁS, desde as Estações de Transferência de Custódia ETC’s até os pontos de entrega aos Usuários.

GÁS – GÁS COMBUSTÍVEL CANALIZADO é o energético fornecido por uma CONCESSIONÁRIA a Usuários, na forma canalizada, através de sistema de distribuição adequado, devidamente autorizado pela CSPE.

RD REDE DE DISTRIBUIÇÃO é o conjunto de tubulações, reguladores de pressão e outros componentes que recebe o GÁS de Estação de Controle Pressão e o conduz até o ramal externo ou ramal de serviço de diferentes tipos de Usuários.

Na questão de terminologia do mercado de gás, as expressões “gás canalizado”, “serviços locais de gás canalizado“ e “distribuição de gás canalizado” são termos com significações idênticas, ou seja, são sinônimos, visto que gás é o produto e canalizado é a forma (serviço) de entrega do produto. O correto seria incluir a termo “na forma” para dar lucidez às expressões, que ficariam assim: “gás na forma canalizado”, “serviços locais de gás na forma canalizado“ e “distribuição de gás na forma canalizado”.

Para que não paire dúvida, cabe-se trazer à colação alguns trechos dos parágrafos 1º e 2º da Cláusula Primeira (“Objeto Contrato”) do Contrato  de  Concessão  de Serviços Públicos de Distribuição de Gás Canalizado[11],  celebrado, 21 de julho de 1997, entre a Companhia Estadual de Gás do Rio de Janeiro – CEG (Concessionária) e o Estado do Rio de Janeiro (Poder Concedente): “O objeto do contrato é a exploração, pela  CONCESSIONÁRIA, dos serviços públicos de distribuição de gás canalizado no Estado do Rio de Janeiro, cujos termos da concessão foram aprovados pelo Decreto n° 23.227, de 12 de junho de 1997, publicado no Diário Oficial do Estado, parte I,  p. 1, edição de 13 de junho de 1997.” Os parágrafos desta Cláusula estabelecem que objeto daquele contrato compreende a “distribuição de gás natural, ou de gás manufaturado, (este último obtido a partir do processamento de gás natural ou de nafta), através de canalizações;”, que a execução de atividades correlatas sejam compatíveis com a natureza do serviços referidos anteriormente. E que a Concessionária tem autorização para distribuir através de canalizações o gás liquefeito de petróleo (GLP).

Os serviços locais de gás canalizado

Elucidando o teor do parágrafo constitucional, entende-se que compete aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão à empresa estatal, com exclusividade, os serviços locais de gás canalizado.

Com essa interpretação, alguns Estados constituíram empresas estatais com o objetivo de explorarem os serviços de gás canalizado, conforme figura acima.

Em fevereiro de 1995, foi promulgada a Lei de Concessões e Permissões[12], que estabeleceu diretrizes para o regime de concessão de serviço público, pelo qual o poder concedente, mediante licitação, delega e transfere a terceiros a responsabilidade da execução de serviços de utilidade pública.

A Lei de Concessões e Permissões regulamentou o Art. 175 da CF/1988. Este artigo constitucional estabelecia que:

Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II - os direitos dos usuários;

III - política tarifária;

No inciso II do Art. 2º da Lei de Concessão e Permissão, ficou estabelecido que:

II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;

Diante dessa Lei, houve a necessidade de ajustar o conteúdo do parágrafo segundo do Art. 25, cuja redação estabelecia a prestação de serviço por empresa estatal.

Concessão de serviço público de exploração de gás canalizado

A Emenda Constitucional nº 5 de agosto de 1995, alterou a redação do parágrafo, manteve o monopólio no âmbito Estadual, mas a alterou retirando-a da prestação de serviço por empresa estatal. Assim, o texto Constitucional passou a ter a seguinte redação:

Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

(...)

2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.

(...)

Desse momento em diante, os Estados promulgaram leis estabelecendo o regime de concessão de serviços públicos, delegando contratualmente à empresa privada a prestação de serviço público.

Portanto, a concessão de serviço público de exploração de gás canalizado será sempre formalizada mediante contrato administrativo, o qual deverá observar os termos da legislação, das normas pertinentes e do edital de licitação.

A exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, conforme previsto no Art. 173 da CF/1988.

Ausência de lei federal

O teor do novo parágrafo segundo esclarece que compete aos Estados explorar, diretamente ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.

Com a inclusão da expressão “na forma da lei”, o Legislador tornou o dispositivo em norma de eficácia limitada, não sendo, assim, autoaplicável.

As matérias constitucionais que apresentem a expressão “na forma da lei” ficam com sua aplicabilidade condicionada à lei (federal) complementar.

Regular federalmente os serviços locais de gás canalizado não retira dos Estados a exploração exclusiva desses serviços, simplesmente evita situação inusitada e ao mesmo tempo desastrosa, de cada uma das 27 unidades federativas estabelecer seus próprios regramentos.

Ademais, a expressão “vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação”, o legislador teve o cuidado de não permitir ao presidente da República de regulamentar essa matéria por meio de medidas provisórias. Assim, somente de lei ordinária pelo Congresso Nacional.

Conclusão

Pelo demonstrado, compete ao Congresso Nacional regular e disciplinar os serviços locais de gás canalizado, com base na Lei de Concessões e Permissões[13]. E aos Estados compete, com exclusividade, explorar em seu território, diretamente ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, seja qual for o produto gás.

A regulamentação federal será similar ao texto legal do setor de energia elétrica, Lei Federal nº 12.767, de 27 de dezembro de 2012. Além disso, outros países possuem legislações mais avançadas que a nossa na área de gás natural.

[1] Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997 –  revogou a Lei nº 2004/1953 e extingue o monopólio estatal do petróleo nas atividades relacionadas à exploração, produção, refino e transporte do petróleo no Brasil.

[2] Lei nº 11.909, de 4 de março de 2009

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11909.htm – acesso em 4/3/2020.

[4] Inciso XIV do Art. 2º da Lei nº 11.909, de 4 de março de 2009.

[5] http://www.anp.gov.br/movimentacao-estocagem-e-comercializacao-de-gas-natural/acondicionamento-de-gas-natural – acesso 13/3/2020.

[6] Inciso XVII do Art. 2º da Lei nº 11.909/2009.

[7] https://prensa.naturgy.com/diccionario-energetico/ – acesso 4/3/2020

[8] Inciso VIII do Art. 2º da Lei nº 11.909/2009.

[9] https://prensa.naturgy.com/diccionario-energetico/ – acesso  4/ 3/2020

[10] Contrato de Concessão nº CSPE/01/99 para Exploração de Serviços Públicos de Distribuição de Gás Canalizado que celebram entre si o Estado de São Paulo e a Companhia de Gás de São Paulo – COMGÁS – APÊNDICE G – Página 96 a 99 – https://www.comgas.com.br/wp-content/uploads/2017/05/Contrato-de-Concessao.pdf – acesso 4/3/2020.

[11] http://www.agenersa.rj.gov.br/documentos/deliberacoes/CONTRATO%20DE%20CONCESSAO%20-%20CEG.pdf – acesso 12/3/2020.

[12] Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 – Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências.

[13] Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 – Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previstos no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências.

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