Opinião

Abertura do Mercado - Um Início Muito Alentador

As transformações do setor a partir da nova lei do gás e os desafios para consolidar as conquistas e avançar no desenho de mercado e na regulamentação

Atualizado em

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O ano 2021 foi um ano decisivo para a abertura do mercado de gás. Após um amplo debate que envolveu todos os stakeholders do setor, a Nova Lei do Gás Natural (Lei 14.134/21) foi aprovada em abril de 2021, estabelecendo um marco regulatório moderno, com visão de longo prazo, indispensável para permitir a transição para um mercado competitivo e diversificado, dando segurança e impulsionando os novos investimentos necessários para ampliar a oferta e a demanda.

É significativo que após a aprovação da Lei tenham sido anunciadas várias decisões de investimentos de importantes projetos, como, por exemplo, o desenvolvimento do prospecto de Pão de Açúcar, um importante campo de gás não associado na bacia de Campos.

Ao longo do ano, a atividade no setor foi intensa, para não dizer frenética. A ANP analisou e colocou em discussão importantes temas para pavimentar a abertura do setor, como por exemplo, o Modelo Conceitual, as modalidades de contratação extraordinária de transporte, tarifas de entrada e saída, o acesso às UPGNs.

As transportadoras (TAG, TBG e NTS) viabilizaram o acesso de novos carregadores à malha de gasodutos de transporte, desenhando novos contratos e novas tarifas, e adaptando seus sistemas que até então atendiam apenas um cliente, a Petrobras.

O Comitê de Monitoramento do Gás Natural (CMGN) publicou um Manual Orientativo de Boas Práticas Regulatórias com o objetivo de alinhar as diversas regulações (federal e estaduais) sobre as atividades do mercado de gás.

Vários estados aprimoraram suas legislações e arcabouços regulatórios para introduzir, ou definir mais claramente, as condições de atuação para os clientes livres e os comercializadores, em linha com o processo de abertura do setor.

A Petrobras, prosseguindo com a implementação do TCC, concluiu a venda dos 10% de participação na NTS, assinou o contrato de arrendamento do terminal de regaseificação da Bahia, assinou acordos com terceiros para o acesso a gasodutos de escoamento e plantas de processamento, e diminuiu sua participação nas importações da Bolívia. Nas atividades de exploração e produção, a venda de ativos da Petrobras dinamizou o mercado e atraiu novos agentes, especialmente em águas rasas e áreas terrestres, contribuindo, assim, para a revitalização de bacias maduras e para o crescimento de um novo nicho de mercado, de empresas especializadas nesse segmento.

Por fim, a ANP reportou um forte crescimento dos pedidos de cadastramento de empresas interessadas em atuar como carregadoras, comercializadoras e importadoras de gás natural, demonstrando o interesse dos agentes em participar ativamente no novo mercado de gás.

O resultado destes esforços e movimentos foi que iniciamos o ano 2022 com:

i. 8 novos carregadores na TAG[1], um total de 30 contratos firmados já no modelo entrada e saída; e

ii. pelo menos 11 contratos entre distribuidoras e outros produtores além da Petrobras, totalizando 15% da oferta total ao mercado.

É apenas um início, mas um início muito alentador. Um indicador concreto dos efeitos benéficos da diversificação dos fornecedores e da competição, é que os novos contratos assinados pelas distribuidoras apresentam uma variedade significativas de condições, fórmulas, preços de referência e níveis de preços, em decorrência das estratégias e visões diferenciadas de cada produtor.

Não resta dúvida que o mercado de gás natural brasileiro está em franca transformação em direção a um mercado amplo, líquido e competitivo. Como mostrado na Figura 1, os desafios não são triviais e os próximos anos serão de muito trabalho para consolidar as conquistas iniciais e avançar no desenho de mercado e na regulamentação.

Figura 1 – Caminho em direção de um mercado amplo, líquido e competitivo

Fonte: Elaboração própria IBP

 

É importante salientar uma diferença fundamental em relação aos mercados mais maduros e que já passaram pelo processo de abertura: os países europeus, por exemplo, demoraram duas décadas neste processo, enquanto o Brasil tem uma janela bem mais curta para abrir o mercado e aproveitar o potencial de gás em função da transição energética em curso.

Primeira Onda - Reorganização do Setor e Promoção de um Mercado Funcional e Competitivo

A participação de novos produtores e fornecedores no novo mercado de gás competitivo se dará em duas fases. Neste primeiro momento da abertura do mercado, a oferta de gás simplesmente muda de CNPJ e atende a uma demanda já estabelecida. É a fase que chamamos de “primeira onda”.

Apesar do maior número de ofertantes, a produção nos próximos 3-4 anos deverá aumentar de maneira lenta e gradual, em função dos investimentos já realizados em E&P, do ramp-up dos novos campos e da entrada em operação da Rota 3.

Vale ressaltar que uma parte do aumento de produção do Présal simplesmente compensa o declínio das bacias maduras, em particular da Bacia de Campos (Gráfico 1).

Gráfico 1 – Evolução da produção bruta de gás natural do Pré-sal e do Pós-sal

Fonte: Elaboração própria com dados da ANP

 

A atual infraestrutura de escoamento (incluindo a Rota 3), de processamento e de transporte, grosso modo, suporta o aumento da produção dos próximos 5 anos. Como pode ser visto no Gráfico 2, elaborado pela EPE, as três Rotas do Pré-sal são suficientes para escoar o gás do Pré-sal com folga até 2026.

Gráfico 2 – Produção líquida do Pré-sal e capacidade de escoamento das Rotas 1, 2 e 3

Fonte: EPE – PDE 2031

 

A demanda poderá também ser parcialmente atendida por novos projetos de GNL, conexões menores às grandes malhas de gasodutos de transporte e “gasodutos virtuais” nos sistemas isolados (sobretudo nas regiões Norte e Nordeste).

Entretanto, para que essa primeira onda se concretize é essencial a consolidação do acesso de terceiros ao transporte e às infraestruturas essenciais (dutos de escoamento e UPGNs), assim como o avanço na agenda regulatória da ANP e a aprovação de regulamentações estaduais consistentes que removam as barreiras à implementação de um mercado livre de gás natural nos Estados.

Segunda Onda: Decisões de Investimento em Nova Produção Frente a uma Demanda Incerta

A partir da segunda metade desta década pode-se esperar uma “segunda onda” de novos produtores/fornecedores de gás natural que tem potencial de trazer uma expansão mais rápida da oferta. Já existem novas descobertas em avaliação e as decisões estratégicas para viabilizar a nova oferta de gás estão sendo tomadas neste mesmo momento, muitos anos antes do início da produção. Estas decisões envolvem escolhas técnicas e econômica importantes, que irão definir o tipo de plataforma, as estruturas para eventual separação e reinjeção do CO2, o destino do gás natural, a ser escoado e/ou reinjetado, o diâmetro e o melhor traçado do eventual gasoduto de escoamento, a melhor escolha de shore approach em relação a infraestrutura existente e a ser construída em terra, etc.

Esta segunda onda é visível nas projeções da EPE (Gráfico 3) e corresponde à entrada em produção de novos campos, tanto no Pré-sal, como em outras bacias promissoras, como a de Sergipe-Alagoas.

Gráfico 3 – Previsão de produção líquida de gás natural nacional

Fonte: EPE – PDE 2031

 

O sucesso em alcançar um ambiente regulatório eficiente e estável será um fator decisivo para sustentar as decisões de investimento de longo prazo relacionadas ao desenvolvimento de novos campos e à estratégia de monetização do gás natural associado.

Além disto, tão importante quanto o ambiente regulatório apropriado, é a identificação de novas demandas em escala e com previsibilidade adequadas para absorver os volumes e viabilizar novas ofertas de gás natural. Para isto é necessária uma retomada consistente do crescimento econômico do país, que passa também por reformas, como a tributária, e implementação de um ambiente macroeconômico de maior estabilidade. Tal cenário é fundamental para o desenvolvimento de novo projetos industriais que utilizem gás natural.

Outro fator importante que influenciará o tamanho desta segunda onda, em volume de investimentos e produção adicional, é o papel do gás natural na matriz de geração elétrica, em função das novas regras do setor elétrico que estão em discussão no Congresso Nacional. Apesar dos custos muito competitivos e do alto potencial das fontes renováveis no Brasil, é de se esperar que a geração termelétrica a gás ainda terá um papel relevante na matriz elétrica brasileira, em complementação às fontes renováveis e importante para ampliar a segurança do suprimento de energia elétrica. Uma prova dessa relevância foi constatada na crise hídrica de 2021, que demandou o acionamento intensivo das térmicas a fim de evitar o desabastecimento.

Já foram feitos diversos esforços de identificação de demandas potenciais de gás natural por parte de diversas entidades (e.g. Relatório BNDES 2020[2], Mapeamento da Demanda de Gás Natural no Rio da FIRJAN[3], entre outros). A própria EPE, no PDE 2031, apresenta um cenário de referência de crescimento da demanda termelétrica e não termelétrica, e em seguida busca estimar os volumes adicionais que poderiam ser demandados (e disponibilizados) a partir de uma maior abertura do mercado de gás com preços mais competitivos. Como pode ser visto a seguir, esta demanda adicional poderia chegar a 66 MMm3/d em 2031, ou seja 38% a mais, quando comparado com o cenário de referência (173 MMm3/d em 2031).

Gráfico 4 – Demanda de gás natural no Brasil: Cenário de Referência vs. Cenário Novo Marcado de Gás

Fonte: EPE – PDE 2031

 

É importante ressaltar que num mercado relativamente pequeno, como o do Brasil, a inserção de novas fontes de gás com volume significativo quando comparado ao tamanho total do mercado, precisará da identificação de projetos âncoras com escalas e horizontes de desenvolvimento apropriados, e condições comerciais adequadas. Ademais, como nossa produção é principalmente de gás associado ao petróleo, é preciso uma âncora com demanda firme. Neste sentido, termelétricas a gás flexíveis não constituem âncoras adequadas para o gás doméstico.

Comprovada a existência de novas demandas com escalas, horizontes de desenvolvimento e condições comerciais adequadas, criam-se as bases para a viabilização das novas infraestruturas necessárias para o escoamento e processamento do gás natural. Para ser economicamente viáveis, estas infraestruturas precisam ser compatíveis com a geração de demanda. A título de exemplo, para movimentar 15-20 milhões de m3/dia são necessários entre US$1,5-2,0 bilhões de investimento em infraestrutura de escoamento e processamento. Com investimentos desta ordem de grandeza, não é possível imaginar, como as vezes é sugerido, que seria possível inverter as etapas (primeiro a infraestrutura, depois demanda).

No escoamento e no transporte de gás natural a viabilização requer uma demanda especifica assegurada para utilização da capacidade destas infraestruturas, diferentemente da distribuição, onde os investimentos em novos dutos podem ser recuperados nas tarifas pagas pelo conjunto de usuários de todo o sistema de distribuição.

Por fim, devemos lembrar que os concessionários de E&P têm obrigação de maximizar o valor econômico dos recursos descobertos para o operador e para a sociedade como um todo (através do pagamento de participações governamentais e impostos). Neste contexto, a reinjeção do gás nos campos de petróleo e gás associado tem a importante função de manter a pressão do campo e maximizar a recuperação do petróleo.[4] Sem contar que os altos teores de CO2 em alguns campos limitam técnica e economicamente o tratamento do gás, restringindo ou até inviabilizando seu escoamento para o mercado. Além disso, o gás reinjetado não é perdido ou “desperdiçado”, pois depois da recuperação dos líquidos, o gás reinjetado poderá ser quase totalmente recuperado. Campos de petróleo que tiveram alta reinjeção de gás se transformam em campos de gás ao final de suas vidas, podendo ser inclusive transformados em sistemas de estocagem de gás.

Reservas Abundantes, mas um Horizonte Limitado para seu Aproveitamento

O Brasil possui reservas abundantes de petróleo e de gás que, se desenvolvidas, podem contribuir para o crescimento econômico e o desenvolvimento social do país. O gás natural, entre todos os combustíveis fosseis, é o que apresenta o menor conteúdo de carbono e, portanto, tem sido considerado “o combustível da transição” para uma matriz energética com menor intensidade de emissões e mais sustentável.

Neste contexto, a pressão de toda a sociedade por soluções com menores níveis de emissão de CO2 – revigorada e ampliada após as definições da COP-26 - pode servir de estímulo adicional à expansão do mercado de gás natural. Por ser o combustível fóssil menos poluente, o gás natural é uma alternativa para substituição de combustível líquido e carvão na geração de energia, nos processos industriais e no transporte de pessoas e cargas.

O setor de petróleo e gás está comprometido em reduzir as emissões de gases de efeito estufa, bem como reduzir as perdas de metano ao longo da cadeia de valor do gás natural, uma prioridade que está sendo endereçada no mundo e no Brasil. Outra vertente é o desenvolvimento de tecnologias e modelos de negócio para a remoção, armazenamento e a utilização de carbono.

O IBP entende que a janela para o aproveitamento dos nossos recursos de gás natural não é muito ampla e, por isso, defende que a atratividade dos investimentos no setor deva ser mantida, garantindo a segurança jurídica, regras de mercado para a formação de preço e o aprimoramento do arcabouço regulatório.

No segmento de gás natural, é vital a implementação da Lei do Gás, por meio da consolidação de regras que garantam a transição para um mercado aberto, dinâmico, competitivo, com multiplicidade de agentes e isonomia de tratamento para produtores/supridores. Tais premissas e ações vão permitir ao Brasil promover o uso do gás natural como melhor alternativa para garantir o suprimento energético estável, aliado ao uso de energias renováveis.

 

[1] TAG - Oferta de Serviço Extraordinário com início em Jan 2022 (https://media.ntag.com.br/uploads/2021/12/Resultado_Ofertas_TAG_2022.pdf)

[2] https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/publicacoes/relatorios/relatorio-gas-2020

[3] https://www.firjan.com.br/publicacoes/publicacoes-de-economia/mapeamento-de-demanda-de-gas-no-rio-1.htm

[4] https://www.alemdasuperficie.org/setor/reinjecao-de-gas-como-funciona/

 

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