Opinião

E depois da lei? A evolução do marco regulatório do gás

A abertura e ampliação do mercado de gás do país é um dos desafios postos para o Estado brasileiro e para a ANP. Torná-lo competitivo em todos os elos de sua cadeia é o desafio que vem sendo enfrentado por agentes públicos nas esferas federal e estadual.

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Desde a abertura do setor petróleo, a ANP vem enfrentando o desafio de regular um mercado imenso, que vai desde a exploração e produção (E&P) de petróleo e gás até a revenda de combustíveis, aí incluídos os derivados de petróleo, o gás natural e os biocombustíveis. Trata-se de construir e manter atualizado um estoque regulatório que disciplina a atuação de mais de 100.000 agentes econômicos.

Essa atualização enseja a necessidade de conhecimento e contínuo monitoramento do mercado: não é possível regular o que não se conhece! E o mercado varia suas demandas, funcionando praticamente como um organismo vivo que tem vontade própria. A construção de arcabouço regulatório para licitar áreas para exploração e produção de petróleo e gás, para distribuir combustíveis em todo o território nacional e para garantir maior inserção do gás na matriz energética brasileira são exemplos de atuação da agência, que ocorreram em sintonia com os anseios da sociedade brasileira e precisam continuar a ocorrer dessa forma.

Atualmente, a abertura e ampliação do mercado de gás do país é um dos desafios postos para o Estado brasileiro e para a ANP. Torná-lo competitivo em todos os elos de sua cadeia é o desafio que vem sendo enfrentado por agentes públicos nas esferas federal e estadual.

Foi nesse sentido que o programa Gás para Crescer, sucedido pelo Novo Mercado de Gás, desaguou na sanção da Nova Lei do Gás (a Lei nº 14.134/2021, que dispõe sobre as atividades relativas ao transporte de gás natural, e sobre as atividades de escoamento, tratamento, processamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural, regulamentada pelo Decreto nº 10.712/2021).

Merecem destaque na nova regulamentação o livre acesso (negociado) de terceiros a instalações essenciais como os gasodutos de escoamento[1], unidades de processamento de gás natural (UPGN) e terminais de gás natural liquefeito (GNL), a desverticalização (ou unbundling) da cadeia de valor do gás[2]; a possibilidade de contratação de gás por entrada e saída, com tarifas proporcionais ao percurso contratado, dentre outros pontos.

Com a crescente produção do gás do pré-sal e a crescente importação de gás, a nova lei visa a promover a competição nos diversos elos da cadeia, com o objetivo de tornar o gás natural mais acessível e, a partir daí, mais consumido no país.

A partir daí, a criação de um arcabouço regulatório infralegal que permita o pleno funcionamento de um mercado competitivo e sadio caberá à ANP, que precisará atuar de forma responsiva. Não será simples criar, tempestivamente, toda a regulação infralegal necessária para enfrentar a realidade de o país possuir um mercado de gás natural cujo crescimento esbarra em limitação de infraestrutura e preços proibitivos para diversas formas de consumo.

Em números, a produção média de gás do país em 2021 é de 132,6 milhões de m3/dia[3], 21% superior aos 109,9 milhões de m3/dia produzidos em 2017. Porém, a contrário sensu, a oferta de gás nacional ao mercado brasileiro encolheu no período, passando dos 60,5 milhões de m3/dia disponibilizados em 2017 para 51,7 milhões de m3/dia em 2021[4], com inequívoca pressão sobre os preços.

Ainda em números, o gás natural proveniente das bacias marítimas de maior potencial produtivo, e onde está localizado o pré-sal (as bacias de Campos e Santos), é negociado entre produtores a preços de cerca de R$ 11,5/MM Btu, enquanto esse mesmo gás, após passar pelos dutos de escoamento, UPGN´s e sistema de transporte, é vendido para as distribuidoras por quase seis vezes mais, quando destinado a consumo não térmico, e por quase quatro vezes mais, quando destinado ao consumo térmico (Figura 1).

Figura 1 – Evolução do preço do gás das bacias de Campos e Santos, praticado na venda entre produtores e na venda às distribuidoras do Sudeste, Sul e Centro-Oeste.

 

Fonte: ANP (preços com impostos)

 

Enquanto a ANP se depara com obrigações regulatórias advindas da nova lei do gás (a lei e seu decreto regulamentador citam a agência dezenas de vezes) e a sociedade espera que a competição pelo fornecimento da molécula (que ainda é muito pequena) torne seu preço acessível, proliferam as iniciativas de implantação de novos terminais de GNL privados, que pretendem aportar gás natural ao país a preços desvinculados dos praticados no mercado interno. A mídia especializada já anuncia, além dos terminais privados construídos mais recentemente em Sergipe e no Rio de Janeiro, o de Barcarena, no Pará, o do Porto de Santos, em São Paulo, e o da Baía de Bertioga, em Santa Catarina.

Se torna evidente a legítima intenção privada de busca por gás acessível e o desinteresse estatal de acelerar a construção de dutos de escoamento, para ampliar a transferência do gás do pré-sal para terra.

É digno de reconhecimento o esforço privado para ampliar a oferta de gás ao mercado, via importação através de terminais de GNL. Mas merece atenção do poder público o fato de que o gargalo de infraestrutura de transporte e escoamento, hoje existente, promove o uso do gás importado em detrimento do produzido no país, que paga royalties e participações especiais para União, estados e municípios.

Merece ser observado que uma empresa produtora de petróleo, com sua carteira de projetos repleta de oportunidades altamente lucrativas, dificilmente se disporá a investir bilhões de Reais em projetos de infraestrutura de menor atratividade (como os dos gasodutos de escoamento do gás do pré-sal para a costa), enquanto existirem projetos a desenvolver, decorrentes das inúmeras áreas adquiridas nos leilões realizados pela ANP recentemente.

Resta claro, portanto, que a nova lei do gás, sozinha, não será capaz de resolver questões que incluem opções de investimento por parte das petroleiras; e que empresas que precificam risco exploratório não são as mais adequadas para se responsabilizar pela construção e implantação de um projeto de risco reduzido, como a construção e operação de um duto de escoamento ou transferência.

Também resta claro que, se uma diferença de preços como a apresentada na Figura 1 (somada às deduções que esses investimentos permitem da base de cálculo das participações especiais de campos do pré-sal) não é incentivo suficiente para a construção desses dutos, resta esperar que a competição pelo fornecimento da molécula cumpra seu papel de fomento ou mesmo que o poder público imponha limites para a reinjeção do gás, a fim de encorajar seu aproveitamento.

Se, tempestivamente assim o for, a indústria do gás natural poderá de fato contribuir para a maximização da geração de emprego e renda no país. Mas, se o contrário ocorrer, será fácil concluir que a Nova Lei do Gás já nasceu demandando aperfeiçoamentos.

 

[1] Gasodutos que conectam os campos de petróleo às unidades de processamento de gás natural, sempre localizadas em terra.

[2] Proibição da prática de atividades relacionadas à exploração e produção, importação, carregamento e comercialização pelo transportador.

[3] Média de janeiro a junho de 2021.

[4] MME, junho de 2021.

 

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