Opinião

Gás natural a preços acessíveis quando?

Após quase um ano da Lei nº 14.134/21, a Nova Lei do Gás, os preços do energético retornam a patamares pré-pandemia.

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Parece que, crises e conflitos a parte, todo o esforço praticado em prol de um mercado mais competitivo, apto a entregar energia a preços mais acessíveis, ainda vai demandar mais tempo de maturação.

Definido pelo próprio MME, em 2019, como monopsônio na produção, oligopsônio na distribuição, além do terceiro mais caro dentre as principais referências da Europa, não era de se esperar que esse patamar de preços pudesse se alterar com a simples promulgação de uma lei (ainda mais antes da elaboração, pela ANP, do regramento infralegal necessário para a aplicação da referida lei).

De maneira simples, a inserção da competição brusca, sem crescimento econômico, seria como se o governo brasileiro fosse patrocinar a retirada de parte do mercado da Petrobras para entregá-lo a competidores, à revelia da empresa. Uma utopia!

Negocialmente falando, é certo que a estatal tem seu portfólio de projetos recheado de oportunidades mais lucrativas, e que nesse momento não lhe convém investimentos vultosos de menor atratividade. Consequências do desenvolvimento do pré-sal!

É nesse contexto que a empresa concentra seus investimentos, preserva seus principais mercados e desinveste da cadeia do gás, preservando para si instalações essenciais como unidades de processamento de gás natural (UPGN), dutos de escoamento e alguns terminais de GNL.

Segundo a nova lei, livre acesso a instalações essenciais sim, mas livre acesso negociado e nos termos da regulação da ANP. Ora, isso quer dizer esperar a regulação da ANP e negociar, quase na totalidade dos casos, com a Petrobras. Ou seja, tem-se uma pretensão de abertura que não deverá ser simples nem rápida, e que muito provavelmente se dará abordando mercados complementares aos de interesse da estatal, que só surgirão com crescimento econômico.

Uma prova dessa realidade foi desenhada recentemente. Enquanto se comemora o resultado de algumas chamadas públicas de pequena monta, que resultaram em redução de preços (Potigás, Bahiagás e Copergás são exemplos), instala-se uma importante disputa entre a União e o estado de São Paulo em torno do mercado paulista, o segundo maior do país e o primeiro em termos de consumo industrial.

Essa disputa tem, em seu âmago, a classificação, pela agência reguladora paulista – Arsesp, do Gasoduto Subida da Serra como gasoduto de distribuição, já que começa e acaba no estado de São Paulo. A ANP contesta essa classificação, alegando tratar-se de gasoduto de transporte.

Para a agência federal, essa classificação é importante, já que o modelo regulatório adotado está baseado na desverticalização das atividades do setor e na oportunização da rede de dutos de transporte como o principal palco para a comercialização do gás.

No vácuo regulatório existente entre a promulgação da Nova Lei do Gás e a elaboração da regulação infralegal que propiciará sua correta implantação[1], o estado de São Paulo emitiu decreto definindo gasoduto de distribuição. Para os estados, a Constituição Federal lhes outorga o direito de legislar sobre questões estaduais de gás canalizado. Para a União, a regulação das atividades de petróleo, gás natural e biocombustíveis é de sua responsabilidade e deve ser desempenhada pela ANP.

A disputa foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) e não deve ter solução rápida.

No entanto, esse não é o único ponto que diz respeito a questões estaduais. O aprimoramento dos marcos legais estaduais também tem seus senões.

Embora já se tenha avançado bastante e garantido por lei o direito de o consumidor final escolher seu fornecedor (figura do consumidor livre definida na Lei do Gás[2], na Nova Lei do Gás[3]  e em regulações estaduais de 17 estados), até agora como consumidores livres no país só há as fábricas de fertilizantes arrendadas pela Petrobras.

Ocorre que para que essa escolha possa ser feita e a regra posta em prática, os estados precisam não apenas definir o porte do consumidor que terá esse direito, mas também se estruturar para gerir suas escolhas e mudanças de opinião. Os diversos fornecedores da molécula gás também deverão fazer o mesmo! Nem é preciso dizer que essa estruturação não é rápida nem simples para os estados nem para os diversos agentes econômicos, principalmente se a definição de Consumidor Livre contemplar ampla gama de agentes econômicos (quanto menor for a exigência para enquadramento como Consumidor Livre, mais agentes serão enquadrados e mais complicada será essa gestão).

Não se pode deixar de reconhecer avanços importantes na abertura do setor e na ampliação da sua competitividade, mas é crucial ter claro que ainda serão necessários esforços significativos por parte dos gestores públicos, em prol do estabelecimento dos princípios norteadores da livre concorrência. E neles se incluem o livre acesso negociado a instalações essenciais, a implantação de um Código de Rede para disciplinar o fluxo de gás nos gasodutos de transporte, a elaboração de normas para viabilizar a estocagem de gás, necessária para garantir a flexibilidade do sistema, a solução do conflito entre União e estados (hoje no STF), relativo à definição de gasoduto de transporte, dentre outros itens, que também vão carecer de regramentos a serem construídos pela ANP. E ainda ter-se-á que contar com um significativo crescimento da economia brasileira, para que se possa chegar a um Novo Mercado de Gás significativo.

Enquanto a melhor opção é NÃO ESMORECER, é crucial lembrar que o patamar de preços ofertado ao mercado tem o condão de acelerar essa transição. É preciso, pois, que se tenha em mente que o gás brasileiro continua caro para o consumidor final; que se já produz gás suficiente para todo o consumo brasileiro desde 2015 e que as importações há tempos são menores do que a reinjeção (Figura 1). Trata-se de um cenário que ressalta a necessidade de expansão de infraestrutura e de suporte estatal para que esse gás possa realmente se transformar em negócio.

Figura 1 – Histórico de Produção, Demanda, Importação e Reinjeção de Gás Natural

Fonte: ANP Obs. Dados de 2021 são médias de janeiro a outubro.

 

O que parece difícil de entender é que, enquanto instituições públicas como o BNDES e a EPE garantem que o gás a preços competitivos pode ser excelente insumo para a indústria, aí incluídos fertilizantes, metanol etc., e o presidente do país vai à Rússia preocupado com a disponibilidade de fertilizantes para o agronegócio brasileiro, o gás negociado entre produtores na Bacia de Santos, coração do pré-sal, é entregue às distribuidoras nos city gates (depois de retiradas suas frações mais ricas) por um preço 3,8 vezes maior quando destinado ao consumo não termelétrico e 2,6 vezes quando destinado ao consumo termelétrico. E não se tem, por parte da ANP, o posicionamento a respeito do que seria o preço justo desse gás.

Figura 2 – Preço do Gás negociado entre produtores e vendido às distribuidoras estaduais

Fonte: ANP

 

Isso porque, partindo-se da premissa de que as negociações de preços entre as petroleiras são justas, cabe indagar se as tarifas ora praticadas para escoamento, tratamento e transporte de gás também o são. O que faz para que o preço do gás adquirido entre parceiros seja vendido às distribuidoras estaduais tão alto? Estaria a paridade internacional justificando a elevação do custo dessas tarifas, sem que a ANP proceda a verificação?

No frigir dos ovos, resta claro que a promessa de gás a preços acessíveis, decorrente da promulgação da Nova Lei do Gás, desconsiderou o longo trajeto a ser percorrido para a transição de um modelo monopolista para um de plena competição, demandante de sofisticados sistemas de controle e gestão de redes, de monitoramento de demandas de consumidores livres e de fluxos nos diversos pontos de entrada e saída, dentre outros aspectos dessa delicada transição.

Também resta claro que é imprescindível que se persista na direção da abertura, e rumo ao sonhado mercado eficiente e competitivo. Se assim não o for, todo esse esforço terá servido tão somente como pano de fundo para justificar os desinvestimentos da Petrobras, o gás importado continuará complementando o abastecimento nacional e o gás do pré-sal muito provavelmente retornará às jazidas, sem gerar benefício para a sociedade brasileira.

 

[1] A ANP ainda não definiu as características técnicas de diâmetro, pressão e extensão necessárias para estabelecer o limite entre gasodutos de transporte e distribuição, nos termos do Art. 7º, item VI da Nova Lei do Gás.

[2] Lei nº 11.909/2009

[3] Lei nº 14.134/2021

 

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