Opinião

Impacto da MP da Eletrobras no Mercado de Gás Natural

Imposição de térmicas com regras locacionais limita e distorce a competição entre os projetos termelétricos

Atualizado em

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A votação da Medida Provisória nº 1.031/2021, que tratava da desestatização da Eletrobras, foi utilizada pelo Congresso Brasileiro para realizar uma mudança radical na política para os setores de eletricidade e gás natural no Brasil. Talvez esta tenha sido a maior mudança na política energética nacional já realizada pelo Congresso, sem que tais mudanças tenham sido devidamente avaliadas pelas instâncias de planejamento energético nacional, como a EPE e as Agências Reguladoras setoriais.

O parágrafo primeiro do artigo primeiro da MP 1.031, que apontava que a capitalização seria a forma de desestatização da Eletrobras, foi alterado e transformado em um longo texto composto por 657 palavras, um dos mais longos já aprovados. Ao alterar o artigo primeiro ao invés de introduzir as emendas em artigos adicionais separados, o Parlamento obrigou o Executivo a escolher entre vetar toda a MP ou sancionar. Ou seja, não havia como vetar trechos dos parágrafos sem vetar todo o parágrafo. Por sua vez, o veto a todo o parágrafo primeiro da lei inviabilizaria a privatização da Eletrobras. Uma verdadeira cunha jurídica foi introduzida na MP, criando um planejamento energético determinativo para os próximos anos no que tange à expansão do setor elétrico e de gás natural.

A principal determinação do artigo primeiro é realização de leilões exclusivos para termelétricas a gás natural para contratar 8 GW de potência. Este leilão ocorrerá na modalidade de leilão de reserva, ou seja, a contratação não será feita pelas distribuidoras, mas pelo sistema elétrico com os custos pagos por todos os consumidores de energia elétrica.

Os leilões de reserva para a contratação destas termelétricas serão locacionais, ou seja, deverão ocorrer por região, sendo:

  • 1.000 MW na Região Nordeste, nas regiões metropolitanas das Unidades da Federação que não possuam na sua Capital ponto de suprimento de gás natural na data de publicação da Lei;
  • 2.500 MW na Região Norte distribuídos nas capitais dos estados ou região metropolitana onde seja viável a utilização das reservas provadas de gás natural nacional existentes na Região Amazônica, garantindo pelo menos o suprimento a duas capitais que não possuam ponto de suprimento de gás natural na data de publicação da Lei;
  • 2.500 MW na Região Centro-Oeste nas capitais dos estados ou região metropolitana que não possuam ponto de suprimento de gás natural na data de publicação da Lei;
  • 2.000 MW na Região Sudeste, sendo 1.250 MW (mil duzentos e cinquenta megawatts) para estados que possuam ponto de suprimento de gás natural na data de publicação da Lei, e 750 MW (setecentos e cinquenta megawatts) para estados na Região Sudeste na área de influência da Sudene.

Ressalte-se ainda que estas térmicas deverão ter um fator de capacidade mínimo de 70%. Ou seja, trata-se de térmicas inflexíveis, que serão contratadas por um período de 15 anos. A MP ainda estabelece um preço-teto para o leilão destas térmicas, igual ao preço-teto estabelecido para geração a gás natural no leilão A-6 de 2019. Segundo o MME, este preço atualizado para o mês de junho de 2021 seria de aproximadamente R$ 365,00 por MWh.

A MP foi aprovada pela Câmara em 21/06/2021 e sancionada sem vetos pela Presidência da República no dia 13/07/2021, tendo sido convertida na Lei 14.192. Uma vez sancionada, serão necessários estudos para avaliar os impactos desta Lei sobre o setor elétrico e de gás natural. Para isto, será importante o Decreto Regulamentador desta lei que poderá dar mais detalhes sobre a implementação dos comandos da Lei. Entretanto, já se pode afirmar que, caso a Lei seja implementada, os impactos sobre a indústria de gás e eletricidade serão muito importantes. Neste artigo faremos uma análise preliminar dos impactos para o setor de gás natural.

O primeiro e talvez mais importante impacto é o forte aumento da capacidade de geração termelétrica e da demanda de gás nos próximos anos. A capacidade de geração termelétrica saltará dos atuais 12 GW para 20 GW até 2030. Entretanto, a demanda de gás do segmento de geração termelétrica deverá dobrar. Isto porque os 8 GW que serão agregados como resultado da MP terão um fator de capacidade mínimo (ou inflexibilidade) de 70%, bem acima do fator de capacidade médio do parque de geração atual, que é de cerca de 40%. Considerando um despacho mínimo de 70%, a demanda destes novos 8 GW de térmicas seria, no mínimo, de 25 MMm³/dia, podendo atingir em torno de 36 MMm³/dia de gás natural no pico.

O outro impacto importante será a expansão da malha de transporte de gás. A lei determina que 6 GW dos 8 GW das térmicas sejam construídas em locais onde hoje não existe capacidade de transporte de gás. No caso da Região Norte, existe a exigência de levar gás doméstico para duas capitais que atualmente não têm suprimento de gás. Caso Porto Velho seja contemplada, por exemplo, seria necessário construir um gasoduto de cerca de 520 Km conectando a cidade com as reservas de Urucu ou Juruá no Amazonas. Não está claro qual outra capital do Norte se encaixa nas exigências da MP. Atualmente, já existe um projeto em implantação de levar o gás do campo de Azulão, no Amazonas, para Boa Vista em Roraima por caminhão de GNL.  O projeto da térmica de Boa Vista abastecido por caminhão de GNL se justificou pelos altos custos da geração elétrica nos sistemas isolados. A implantação de um projeto como o de Boa Vista numa cidade interligada ao SIN (Sistema Interligado Nacional de energia elétrica) não teria sido viável. Para as outras capitais da Região Norte (Belém, Palmas, Macapá, Rio Branco) não há possibilidade clara de abastecimento por duto a partir das reservas provadas de gás da Região Amazônica.

É interessante que a MP menciona que sejam utilizadas as “reservas provadas” de gás natural nacional existentes na Região Amazônica. Isso faz sentido porque, nos prazos determinados para a implantação das térmicas da MP, não haveria tempo útil para explorar e desenvolver novas reservas. Porém é importante salientar que as reservas provadas das bacias sedimentares da Região Amazônica (Bacia de Solimões, mais a oeste, e Bacia do Amazonas, mais ao leste no estado de Amazonas) já estão comprometidas para o abastecimento das térmicas de Manaus (no caso do gás de Urucu) e da térmica de Boa Vista (no caso do gás de Azulão).

Da mesma forma que no caso da Região Norte, as térmicas para a região Centro Oeste irão requerer a construção de novos gasodutos para regiões metropolitanas ou Capitais que não possuem pontos de suprimento de gás. O caso de Brasília é parecido ao caso de Boa Vista. Hoje Brasília recebe gás por caminhão de GNL. Não está claro na MP se isso se configura como ponto de recebimento. Caso Brasília fosse contemplada, seria necessário a construção de um gasoduto de 905 Km conectando a cidade ao duto da TBG (Gasbol).

Vale ressaltar que a implementação de novos gasodutos é uma empreitada de enorme complexidade do ponto de vista regulatório, ambiental e econômico. O país não constrói novos gasodutos desde 2010 e o processo regulatório e de licenciamento para novos projetos de transporte envolve procedimentos que ainda não foram testados. Do ponto de vista de contratação, será necessário realizar o leilão de contratação das térmicas antes mesmo de haver a contratação do transporte. Assim, o risco para os empreendedores termelétricos será importante. Atrasos na construção dos gasodutos poderão ter grandes impactos na sustentabilidade do projeto termelétrico e, também, no equilíbrio de oferta e demanda do setor elétrico, podendo comprometer a tão almejada segurança energética.

A viabilidade e facilidade para a contratação dos 8 GW deve variar por região. No caso da Região Norte, existem muitos obstáculos a serem vencidos já que as térmicas terão que ser abastecidas por gás doméstico e, no caso de duas capitais, será necessário a construção de longos gasodutos. Estas condições reduzem em muito o potencial de competição neste leilão. Portanto a viabilidade dependerá basicamente da disponibilidade de reservas e do custo e viabilidade ambiental dos gasodutos necessários para o suprimento. Ressalte-se que estas térmicas terão que estar operacionais até 2028. Para tanto, todos os entraves regulatórios e de licenciamento deverão ser resolvidos até um leilão A-6 no fim de 2023.

Com exceção da Região Norte, não existe restrição para a participação de térmicas supridas com GNL importado, o que simplifica muito o processo e soluciona o problema de disponibilidade de gás. Entretanto, no caso da região Centro-Oeste, o licenciamento, a construção e o custo dos gasodutos poderão ser barreiras importantes para a viabilidade da contratação destas térmicas.

No Nordeste, os estados contemplados seriam Maranhão e Piauí, pois são os únicos estados que não possuem pontos de suprimento de gás natural na sua Capital (sempre desde que não se considere a entrega de gás por caminhão de GNC ou GNL). Em ambos estados, poderiam ser implantadas plantas de regaseificação de GNL na costa ou suprimento por gasodutos a partir do Ceará ou do Bacia do Parnaíba, para abastecer novas térmicas nas regiões metropolitanas, o que permitiria evitar os custos e a complexidade de implantação de novos gasodutos de transporte.

Já para os 2000 MW da região Sudeste, não existem barreiras importantes para a contratação. A oferta de GNL pelos terminais de regaseificação já existentes e as reservas de gás nacional, em particular do Pré-sal permitirão a concorrência entre diferentes projetos.

Caso os leilões de contratação de 8 GW térmicas sejam bem-sucedidos, os impactos sobre a concorrência no mercado de geração termelétrica serão importantes. Ao realizar um leilão de reserva locacional e exclusivo para térmicas, o setor elétrico contratará térmicas em um contexto de pouca competição e preços mais elevados. Estes leilões reduzirão a necessidade de contratação de energia de reserva, diminuindo o mercado potencial para os projetos que não puderem participar do leilão locacional.

Ressalte-se que não poderão participar do leilão de energia de reserva da MP 1031 os seguintes projetos: i) projetos localizados na Região Sul; ii) Projetos da Região Nordeste, localizados fora das regiões metropolitanas do Maranhão e Piauí; e projetos localizados em regiões metropolitanas já atendidas por gás na região Centro-Oeste. Ademais, os projetos atuais da Região Sudeste só poderão disputar 2.000 MW.

O mercado que sobrará para as térmicas não contratadas nos leilões locacionais será o dos leilões de Energia Nova. Ou seja, serão contratados a preços elevados os projetos que se qualificarão para os leilões locacionais de Energia de Reserva, reduzindo o mercado para a grande maioria dos projetos existentes aos Leilões de Energia Nova.

O último leilão A-6 realizado em 2019 mostrou que a competição das térmicas a gás com as outras fontes de geração está se intensificando. E essa competição tem um efeito na redução do custo de contratação das térmicas. Um total de 41,7 GW de projetos de geração termelétricas participaram do leilão. Entretanto, do total de 2,98 GW contratado no leilão, as termelétricas a gás foram responsáveis por apenas 0,73 GW a um preço médio final de R$ 188,87/MWh, valor muito inferior ao preço-teto colocado na MP.

É possível ainda apontar distorções competitivas no próprio Leilão de Energia de Reserva da MP 1.031. No caso do Nordeste, produtores de gás doméstico na Bacia do Parnaíba não poderão disputar o leilão através de projetos de gas-to-wire. O gás deverá ser levado até uma região metropolitana e disputar leilão com térmicas a GNL localizadas na costa. Ou seja, a regra do leilão coloca o gás doméstico em desvantagem em relação ao GNL importado.

O caso dos 750 MW a serem contratados na área da Sudene é também ilustrativo destas distorções. A área da Sudene no Sudeste abrange alguns municípios no norte de Minas Gerais e no norte do Espírito Santo. Uma térmica na área da Sudene do Espírito Santo poderia ser abastecida por GNL importado ou mesmo com gás nacional, com custos competitivos e sem grandes complexidades. Entretanto, se o objetivo for levar gás para o norte de Minas Gerais, o suprimento de gás para uma térmica em Montes Claros, que é a principal região metropolitana mineira na área da Sudene, exigiria a construção de um gasoduto de 400 Km desde Belo Horizonte, o ponto mais próximo de suprimento de gás.

Finalmente, cabe mencionar que a dificuldade para viabilizar os gasodutos com o preço-teto de R$ 365,00 por MWh poderá ressuscitar um outro Jabuti já inserido em projetos de lei no Congresso, que é a criação de subsídios para estes gasodutos. Uma das emendas introduzidas no PL 10.985 sobre o risco hidrológico no setor elétrico na Câmara foi a criação do Brasduto, um fundo para financiamento de gasodutos com recursos de participações governamentais do Pré-sal.

O caminho adotado pelo Congresso com o apoio do governo no setor de gás natural certamente não está alinhado com o espírito da Lei do Gás recentemente aprovada e sancionada. Estamos caminhando para um contexto de maior intervenção estatal na dinâmica de competição do setor. Este é um caminho perigoso para o mercado de gás. Por um lado, as dificuldades para a contratação dos 8 GW pode ser um incentivo para mais intervenção estatal nos investimentos no mercado de gás. Por outro lado, os players que se sentirem prejudicados no processo competitivo terão incentivos para judicializar o processo, criando instabilidade jurídica e regulatória.

Uma vez sancionada a MP, é importante que o governo realize estudos detalhados e tenha muita cautela ao publicar o decreto regulamentador da lei. É preciso buscar mecanismos para cumprir a lei de forma equilibrada e sustentável. Em particular, é fundamental definir regras que garantam um mínimo de concorrência (contestabilidade) e os limites de custos aceitáveis.

 

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