Opinião

O papel da Petrobras na desverticalização da cadeia do gás natural

Análise dos requisitos para o sucesso do Novo Mercado de Gás e que devem pautar o planejamento multissetorial para atender as necessidades de infraestrutura e energia do país

Atualizado em

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  • Por Magda Chambriard

O ano de 2021 se inicia com a volta de uma pergunta antiga, ainda sem resposta: que papel a sociedade brasileira espera que a Petrobras desempenhe?

A pergunta parece simples, mas abrange questões extremamente sensíveis, como o papel do refino brasileiro no abastecimento nacional de combustíveis, que aliás é um assunto de segurança nacional; o impacto da paridade internacional dos preços dos derivados e do gás natural, principalmente quando o país opta pela brusca desvalorização de sua moeda; a necessidade de ajustes regulatórios advindos dos desinvestimentos da Petrobras e da desverticalização da cadeia do gás natural, dentre diversos outros.

Em um país em desenvolvimento como o Brasil, não é possível um crescimento contínuo e significativo sem um planejamento multissetorial de longo prazo, para suprimento de suas necessidades de infraestrutura e energia.

Merece ser destacado que a Petrobras, enquanto produtora de quase todo o petróleo e gás natural produzidos no país, detentora de quase todo o parque de refino e importadora de combustíveis líquidos e gasosos, nada mais é do que a principal fornecedora de energia primária do Brasil. A empresa é, portanto, responsável por uma questão de Segurança Nacional.

Ao mesmo tempo, os investimentos da empresa são feitos em parte em moeda forte, mas sua receita com venda de combustíveis é obtida em reais. Portanto, dada a sensibilidade e a obrigatoriedade do fornecimento de combustíveis para mais de 5.000 municípios brasileiros, a integração de políticas setoriais, inclusive as econômicas e cambiais, são essenciais à saúde financeira da empresa e à previsibilidade do abastecimento em todo o território nacional.

No petróleo, o amor nacional à Petrobras, introjetado no imaginário popular por décadas de “O Petróleo é Nosso!”, permitiu o entrosamento social necessário para a remoção tempestiva de todas as barreiras ao seu desenvolvimento. Foram diversas as ações no sentido de garantir o sucesso da empreitada da Petrobras, desde Ajustes SINIEF[1] e financiamentos diversos até a mobilização do Congresso Nacional em prol da capitalização da empresa para enfrentar o desafio do pré-sal, que hoje é seu principal ativo.

Todas essas vantagens competitivas foram ofertadas por uma sociedade orgulhosa de ter a empresa como um dos seus principais ativos, e que espera dela não uma retribuição “ipsi-literi”, mas uma atuação que não lhes despreze seus interesses mais urgentes.

É nesse contexto que hoje já se discute a desverticalização da cadeia do gás natural após a aprovação do PL nº 4476/2020 (originariamente PL nº 6407/2013), em busca do aprimoramento da Lei do Gás. É nesse sentido que se espera que a Petrobras, que pretende a venda de ativos do setor, auxilie o governo federal a agilizar as reformas necessárias ao Novo Mercado de Gás, de forma a garantir preços acessíveis ao mercado brasileiro.

Não há possibilidade de se buscar um mercado competitivo com o fornecimento da maioria do gás produzido concentrada nas mãos de quem também detém a propriedade de gasodutos essenciais para o transporte de gás para a terra e também das UPGN´s.

A questão do livre acesso a gasodutos de escoamento e às UPGN´s é central a toda essa discussão, e essencial para que o país migre de uma paridade gás-óleo para uma gás-gás.

No escopo dessas discussões, segue o inconformismo: (i) com reinjeções da ordem de mais de 40% do gás nacional produzido enquanto aumentam as importações, (ii) com a falta de mobilização para construção da infraestrutura necessária para o escoamento do gás das plataformas para a costa, (iii) com a existência de gargalos logísticos que dificultam o comércio do gás produzido no Sudeste tanto na região Nordeste quanto na região Sul, (iv) com a persistente falta de livre acesso de terceiros às instalações essenciais.

Parece inconcebível, sob ponto de vista do planejamento logístico do país, que gargalos na infraestrutura de transporte restrinjam o fluxo do gás produzido no Sudeste para as demais regiões do país. Inconcebível que sejam gargalos de tal monta que motivem a construção de terminais de GNL no Nordeste (terminal de Sergipe) e no Sul (terminal previsto para São Francisco do Sul), enquanto cresce a reinjeção do gás natural brasileiro.

Importante ressaltar que aqui não se critica a construção dos terminais, iniciativa que só pode ser exaltada pela tempestividade e aposta no Brasil. O que se coloca em discussão são as barreiras que sistematicamente impedem a expansão da infraestrutura do país.

Espera-se que, nesse país continental que é o Brasil, a desverticalização da cadeia do gás natural motive o planejamento multissetorial e acelere o surgimento dessa infraestrutura, para que se garanta o comércio do gás do pré-sal do Nordeste ao Sul do país.

Também se espera que a experiência negativa obtida pelo alto impacto das bruscas alterações cambiais e de preço do petróleo no preço final dos derivados motivem um planejamento da cadeia do gás, que antecipe e mitigue impactos similares, em prol da previsibilidade necessária para ancorar investimentos nos segmentos industriais, termoelétricos ou em qualquer outro.

Não é demais lembrar que da mesma forma que o aumento de importação de derivados assombra os consumidores a qualquer aumento mais brusco de preço do petróleo e/ou variação de taxa de câmbio, importações crescentes podem expor os consumidores de gás do país a maiores riscos, decorrentes de variações bruscas de preço e câmbio.

No inverno no hemisfério norte, por exemplo, aumenta a demanda pelo combustível e, consequentemente, o preço do gás no mercado spot. Ocorre que, não raro, esses períodos coincidem com períodos de seca e/ou verões extremamente quentes no Brasil. Em novembro último, por exemplo, o gás ofertado ao mercado nacional precisou ser complementado por importações que chegaram a 50% dos 101 MM m3/dia ofertados ao mercado. E as importações de GNL, sozinhas, atingiram 28 milhões m3/dia.

Embora muitos digam que o gás ainda não é uma commodity, os números da movimentação de GNL no mundo indicam oportunidade crescente de contratos com a paridade gás-gás.  Em 2019, a tecnologia do GNL foi responsável por 49,3% do comércio inter-regional mundial. No inverno do Hemisfério Norte de 2020/2021, por exemplo, o desequilíbrio entre oferta e demanda mundial e a busca asiática por gás fez com que seus preços no mercado spot atingissem recordes históricos. No Brasil, em novembro último, a demanda por gás importado via navios de GNL também foi bastante elevada, chegando a quase 30% do total ofertado ao mercado nacional.

Sobre oscilações de demanda e seus possíveis impactos no preço do produto, a Figura 1 abaixo serve de exemplo ao apresentar as variações mensais de produção e consumo nos Estados Unidos, país em que está situado o hub de gás amplamente utilizado como referência de preço (Henry Hub - HH). O gráfico ressalta a pressão do consumo que eleva preços, principalmente em períodos de inverno.

Figura 1 – Consumo e produção de gás natural nos EUA

Fonte: US EIA

 

Em termos de preços do gás nos EUA, a Figura 2 apresenta gráfico que ressalta sua queda até julho de 2020, em função dos impactos da pandemia do Covid-19, e sua recuperação a partir daí, atingindo níveis pré-crise.

Figura 2 – Preços do gás natural no US HH

Fonte: 2021 Natural Gas Intelligence

 

Seguindo tendência similar, no Brasil observa-se a queda sensível do preço FOB do GNL[2] a partir de março de 2020, em função da pandemia do Covid-19, atingindo o mínimo de US$ 2,70/MM BTU em junho de 2020 e voltando a crescer, chegando a novembro a US$ 2,95/MM BTU.

A Figura 3 apresenta o histórico de preços da molécula na modalidade contratual Firme Renegociada (MFR) e Novo Mercado de Gás (NMG) e os preços FOB do GNL no Brasil. Apresenta também os preços do transporte do gás da Petrobras vendido às distribuidoras e o preço de venda ao consumidor industrial, na faixa de até 50.000 m3/dia. A observação de tal histórico permite que se especule sobre a real tendência de mudança de paridade gás-óleo para paridade gás-gás.

Figura 3 – Preços do gás natural no Brasil

Fonte: Informe de O&G FGV Energia

 

Nesse cenário de preços em recuperação e de expectativa de recuperação econômica a partir do “day after” da pandemia do Covid-19, diversos analistas alertam para a tendência de elevação dos preços do gás.  O US EIA[3], por exemplo, estima sua elevação para o período 2021 e 2022 nos EUA, gás a US$ 3,01/MM BTU em média para 2021 no HH, redução de produção e consumo e até pressão por substituição de gás por carvão ou renováveis, devido à elevação de preços. Alguns analistas já chegam a apontar para o preço de gás natural de US$ 4,00/MM BTU no HH, no final do ano de 2021.

É nesse sentido que se alerta sobre os impactos de crescentes importações e do aumento da vulnerabilidade do país à elevação dos preços dos combustíveis, principalmente em momento do real depreciado.

Não é demais lembrar que o sucesso do Novo Mercado de Gás depende de preço acessível e previsível e, portanto, de medidas mitigadoras de impactos imprevisíveis, alheios à capacidade de gestão das empresas.

Em um momento em que o país se encontra com a economia fragilizada, sofrendo as consequências de uma recente queda do PIB de 4,1%, a expectativa de aumento do preço do gás aumenta os riscos de negócio, reduz o ímpeto pelo uso do energético e, consequentemente, desmotiva investimentos.

Nessas condições, a palavra de ordem parece ser flexibilidade. Será preciso agir rápido para garantir a flexibilidade suficiente para os ajustes de mercado que se fizerem necessários. Muito provavelmente serão necessários contratos com possibilidade de cancelamento mediante notificação prévia, contratos de compra e venda de GNL sem obrigação de destino final, contratos de compra e venda de gás com maior flexibilidade de demanda.

Também serão necessários os instrumentos previstos no projeto da Nova Lei do Gás (PL nº 4476/20, antigo PL nº 6704/13) como, por exemplo, as estruturas de estocagem de gás e as regulamentações necessárias para que elas funcionem, além de instrumentos regulatórios como fundos amortizadores e/ou tributos ad rem[4] similares à Cide, regulamentação para mercado secundário dentre outros itens.

Por tudo isso, há que se reconhecer que o sucesso do Novo Mercado de Gás depende fundamentalmente do empenho e suporte da Petrobras para agilizar imediatamente todos esses requisitos, inclusive aqueles já determinados pelo Cade no Termo de Cessação de Conduta (TCC), assim como da integração dos diversos órgãos do governo.

No mais, há que se reconhecer também que os governos estaduais estão atentos à questão do gás natural e que se movimentam para atrair investimentos que advirão da desverticalização da cadeia. A mais recente iniciativa de que se tem notícia é o projeto de lei nº 1.937/2020, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), que pretende conceder tratamento tributário diferenciado para empresas que venham se instalar no Rio de Janeiro, com o objetivo de gerar energia elétrica a partir de usinas termoelétricas.

 

Notas:

[1] Para os casos que envolvam documentos fiscais por exemplo é comum o uso de Ajustes SINIEF (por exemplo o Ajuste SINIEF 07/05 instituiu a NFe modelo 55).

[2] GNL – Gás Natural Liquefeito, ou seja, gás transportado sob a forma de líquido.

[3] US EIA - US Energy Information Administration

[4] Tributos ad rem são vinculados a uma base de cálculo física como peso, volume ou qualquer outra unidade física.

 

Magda Chambriard é consultora na FGV Energia. Mestre em Engenharia Química pela COPPE/UFRJ e Engenheira Civil pela UFRJ, se especializou em engenharia de reservatórios e avaliação de formações e posteriormente em produção de petróleo e gás, na hoje denominada Universidade Petrobras.  Na ANP assumiu a Diretoria em 2008 e a Diretoria Geral em 2012, tendo liderado a criação da Superintendência de Segurança e Meio Ambiente, Superintendência de Tecnologia da Informação, os trabalhos relativos aos estudos e elaboração dos contratos e editais, além dos estudos técnicos que culminaram na primeira licitação do pré-sal, além das licitações tradicionais sob regime de concessão. Foi responsável pelas áreas de Auditoria, Corregedoria, Procuradoria, Promoção de Licitações, Abastecimento, Fiscalização da Distribuição e Revenda de Combustíveis, Recursos Humanos, Administrativa-Financeira, Relações Governamentais além das relativas a Exploração e Produção.

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